Há maus tratos de animais em apartamentos, e agora?

Quando fui convidada para tratar desse tema, confesso que fiquei feliz, porquanto meu amor pelos animais é intenso desde tenra idade. Sou uma apaixonada pela natureza e pelos bichos e não tolero nenhuma forma de agressão, principalmente contra os que não conseguem se defender, como as crianças, os idosos e os animais.

É de trivial conhecimento que quem é capaz de ser perverso com os mais indefesos, além de covarde, carrega consigo sinal de transtornos graves e de possível sofrimento na infância. Mas, seja qual for a razão que leve alguém a atos de agressividade contra os animais, o fato é que se trata de crueldade que merece punição severa.

E antes de adentrar no tema é conveniente informar que no Brasil os animais são considerados coisas ou bens que possuem movimento próprio (semoventes), conforme define o Art. 82 do Código Civil. Portanto, o tutor de um animal é proprietário de uma coisa. E para não ferir o direito de propriedade, tanto de poder ter o animal “coisa” em sua unidade autônoma, como exercer o uso e gozo, direitos inerentes à propriedade do seu bem imóvel, é que o Superior Tribunal de Justiça decidiu no  julgamento do Recurso Especial 1783076, em maio de 2019, que as convenções condominiais não podem, de forma genérica, proibir a permanência de animais domésticos nas unidades autônomas, sob pena de violar as duas propriedades (sobre o animal e sobre o imóvel). O relator, Ministro Villas Bôas Cueva, destacou em seu voto que a convenção condominial regula de forma exemplificativa a utilização das propriedades privada e comuns, visando à convivência sensata, mas não pode violar o direito de propriedade, mormente quando se fundamenta em proibição genérica de criação de animais e nada diz sobre a eventual ofensa à saúde, segurança ou sossego dos demais condôminos.

Ou seja, as convenções podem impor regras e normas quanto à forma de manutenção de animais nas unidades autônomas e como eles devem transitar nas áreas comuns. O que não é permitido é simplesmente proibir animais ou impor regras que signifiquem uma proibição velada, ou seja, acabam por camuflar o direito de ter o “pet”, como as que determinam que animais sejam conduzidos no colo, o que sabemos ser muito difícil aos idosos, principalmente quando os animais são obesos.

Superada essa questão, temos que o valor atribuído aos animais tem mudado e isso foi visto pela previsão do Art. 225, parágrafo 1º, Inciso VII, da Constituição Federal de 1988, cujo texto exprime a dignidade animal e proíbe a crueldade, o que acabou por embasar decisões do Supremo Tribunal Federal ao vetar as “rinhas de galo e cães”, “ farra do boi”, dentre outros, embora no Código Civil eles ainda sejam considerados coisas. Logicamente há legislação de proteção aos animais, sendo a primeira de julho de 1934 (o Decreto-Lei 24.645), além de vários projetos legislativos em andamento, inclusive para aumentar a pena e para alterar o Código Civil e retirar dos animais o status de coisa. Pois, reconhecidamente eles têm sentimentos, são seres sencientes (sensíveis, que percebem pelos sentidos e impressões) e devem ter proteção ampla. Isso demostra um avanço civilizacional, esperado desde esta primeira legislação que tratou do tema em 1934, seguindo as mesmas diretrizes de outros países do mundo.

Creio, porém, que a finalidade maior deste artigo não seja a citação de inúmeras leis, projetos e normativos sobre o tema, mas sim de como evitar que maus tratos aconteçam dentro de nossos condomínios, pois essa prática é criminosa. Pretendemos ainda apresentar regras simples para que a saúde, segurança e o sossego não sejam ameaçados e a harmonia seja constante, de forma que os animais estejam protegidos, já que os vizinhos podem fazer cessar atos que afetem a esses requisitos inerentes ao Direito de Vizinhança, conforme prevê o Art. 1.277, do Código Civil.

É recomendável que sejam mantidos em unidades autônomas animais de pequeno e médio portes e não pensem que é pelo barulho, pois há raças maiores (labradores, por exemplo) que são muito mais silenciosos do que alguns pequenos. A questão é a saúde desse animal de grande porte, que precisa gastar energia com longos passeios. É lógico que qualquer cão, num momento ou noutro, latirá. O que não é permitido e causará desconforto a todos é manter cães que latem ou “choram” principalmente quando ficam sozinhos durante muito tempo. Esse comportamento, além de afetar o sossego dos demais condôminos, causará sofrimento ao animal.

Um dos meus “pets” (ou filhos – sou “mãe” de três cães e dois gatos), foi adquirido pelos seus anteriores tutores de um criadouro, com pedigree, mas ele passava dias preso numa sacada com comida e água. Ou seja, compraram um animal que não tinha restrição de alimentos, mas de carinho e atenção e isso fazia com que uivasse frequentemente, e sofresse. Depois da interferência do condomínio e de protetores, ele foi retirado do local e posteriormente adotado por mim. Fica claro, deste modo, que maus tratos não são identificados apenas por agressões físicas, ausência de alimentação/água, mas abandono e descaso àquele ser vivo que sente e expressa sentimentos e dor. O bom senso sempre deverá prevalecer.

Em condomínios de casas ou chácaras é comum a criação de animais maiores, o que é perfeitamente possível, afinal é compatível com o espaço. Com relação às galinhas deve-se atentar ao fato de que a maioria dos estados proíbem, através de seus códigos sanitários, granjas no perímetro urbano, que além de doenças, causam incômodo.

Mas em espaços maiores não se pode manter cães presos a correntes e com limitação de movimentos, isso é cruel e, portanto, representa maus tratos.

Outra questão é que quem mantém animal em casa precisa redobrar a atenção com higiene, tanto para preservar a sua saúde, quanto a dos vizinhos e a do animal. Animais devem ser vacinados, ter local adequado para as necessidades, ter alimentação de qualidade e água à vontade.

Filhotes são lindos, mas crescem, geram cuidados e muitas despesas, portanto, antes de decidir ser o tutor de um animal, dependendo da raça escolhida, sugiro que busque quais as características dele, problemas de saúde comuns como aqueles que são propensos à obesidade, lesões articulares, infecções de ouvido, de rim etc.

A partir de momento que se traz um animal para casa, ele passa a ser de responsabilidade de seu tutor, que deve zelar não apenas por mantê-lo saudável e em ambiente seguro, mas também por qualquer dano que ele causar a outrem. Portanto, barulho excessivo, agressão e lesões físicas, o dono/tutor será responsabilizado, assim como pela saúde física e psicológica desse animal.

Saiba que um animal, em média, vive cerca de 10 anos e depende exclusivamente do seu tutor para ter uma vida digna e feliz.

Dicas simples podem ajudar:

– Escolher animal adequado à sua moradia, considerando o porte e necessidades dele;

– Zelar pela alimentação saudável, água fresca à vontade, passeios frequentes, carteira de vacinação e higiene em dia;

– Cumprir todas as exigências previstas no Regulamento Interno do condomínio, como uso de guias, coleiras, necessidades em locais determinados e, em caso de emergência, higienizar o local imediatamente.  Lembrando que no Estado de São Paulo, há legislação que ordena o uso de focinheira para algumas raças: o Decreto 48.533, de 09 de março de 2004, o qual estabelece regras de segurança para a condução responsável de cães, nos termos da Lei 11.531, de 11 de novembro de 2003;

–  Animais exóticos devem ter autorização do Ibama e cumprir estritamente as normas de guarda e alimentação adequados, sob pena de seus tutores responderem também por maus tratos;

– Para vacinas há postos fixos no município de São Paulo, basta contatar o serviço de informações, através do telefone 156;

– Animais comunitários (gatos e cachorros que ficam em estacionamentos ou calçadas) têm proteção legal em São Paulo, conforme a Lei Estadual 12.916/2008. Esse tipo de animal é “aquele que estabelece, com a comunidade em que vive, laço de dependência e de afeto, embora não possua responsável único e definido”, portanto, síndicos devem respeitar esses animais e não exigirem sua retirada;

– Se você quer, mas não pode ter um animal, ajude as entidades protetoras com doações e visitas. Dar e receber amor é sempre bom.

Fica perceptível que todos têm direito à proteção: Os condôminos vizinhos à unidade que guarda um animal, assim como, esse animal que necessita de alimentação e ambiente adequados, livre de qualquer tipo de sofrimento.

De outra banda, se houver a constatação de ocorrência de maus tratos, uma constatação segura, é dever da testemunha, denunciar o fato. Isso pode ser feito:

– No Estado de São Paulo, junto às Delegacias Especializadas em Proteção Animal (DEPA). Os registros podem ser feitos pela internet (procure pelo site da Secretaria de Segurança Pública do Estado –  http://www.ssp.sp.gov.br/depa);

– Junto às unidades da polícia civil e militar;

– No centro de controle de zoonoses;

– No Estado de São Paulo, quem comprovadamente cometer maus tratos aos animais, fica impedido de obter guarda por 5 anos (Lei 16.308, de 13 de setembro de 2016).

Observamos, destarte, as incoerências entre as legislações: uma protege e a outra qualifica os animais como coisas. Talvez elas expressem a relação rasa e pobre ainda existente do ser humano com o animal, o que clama por legislação severa e que represente efetiva proteção desses seres, tutelando a dignidade da vida e não apenas da via humana. Atualmente, casais separados compartilham a guarda de seus animais e há discussão acerca da possibilidade de penhora de animais domésticos para pagamento de dívidas, como previsto no Art. 837, Inciso II, do Código de Processo Civil, já que pelo Código Civil os semoventes são “coisas”, comprovando a ambiguidade da nossa legislação, que mostra o retrocesso do nosso País. Lembrem-se, apesar da lei formal, animal não é coisa!

APÊNDICE

Lei que trata de maus tratos aos animais – Decreto-Lei 24.645/1934

Art. 3º Consideram-se maus tratos:

I – praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;

II – manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz;

III – obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas forças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo;

IV – golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em beneficio exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interesse da ciência;

V – abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária;

VI – não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário, parar consumo ou não;

VII – abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação;

VIII. – atrelar, no mesmo veículo, instrumento agrícola ou industrial, bovinos com equinos, com muares ou com asininos, sendo somente permitido o trabalho em conjunto a animais da mesma espécie;

IX – atrelar animais a veículos sem os apetrechos indispensáveis, como sejam balancins, ganchos e lanças ou com arreios incompletos incômodos ou em mau estado, ou com acréscimo de acessórios que os molestem ou lhes perturbem o funcionamento do organismo;

X – utilizar, em serviço, animal cego, ferido, enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que este último caso somente se aplica a localidade com ruas calçadas;

XI – açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma um animal caído sob o veículo ou com ele, devendo o condutor desprendê-lo do tiro para levantar-se;

XII – descer ladeiras com veículos de tração animal sem utilização das respectivas travas, cujo uso é obrigatório;

XIII – deixar de revestir com couro ou material com idêntica qualidade de proteção as correntes atreladas aos animais de tiro;

XIV – conduzir veículo de tração animal, dirigido por condutor sentado, sem que o mesmo tenha bolaé fixa earreios apropriados, com tesouras, pontas de guia e retranca;

XV – prender animais atrás dos veículos ou atados àscaudas de outros;

XVI – fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros, sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas contínuas sem lhe dar água e alimento;

XVII – conservar animais embarcados por mais das 12 horas, sem água e alimento, devendo as empresas de transportes providenciar, sobre as necessárias modificações no seu material, dentro de 12 meses a partir da publicação desta lei;

XVIII – conduzir animais, por qualquer meio de locomoção, colocados de cabeça para baixo, de mãos ou pés atados, ou de qualquer outro modo que lhes produza sofrimento;

XIX – transportar animais em cestos, gaiolas ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho e número de cabeças, e sem que o meio de condução em que estão encerrados esteja protegido por uma rede metálica ou idêntica que impeça a saída de qualquer membro do animal;

XX – encerrar em curral ou outros lugares animais em úmero tal que não lhes seja possível moverem-se livremente, ou deixá-los sem água e alimento mais de 12 horas;

XXI – deixar sem ordenhar as vacas por mais de 24 horas, quando utilizadas na explorado do leite;

XXII – ter animais encerrados juntamente com outros que os aterrorizem ou molestem;

XXIII – ter animais destinados à venda em locais que não reúnam as condições de higiene e comodidades relativas;

XXIV – expor, nos mercados e outros locais de venda, por mais de 12 horas, aves em gaiolas; sem que se faça nestas a devida limpeza e renovação de água e alimento;

XXV – engordar aves mecanicamente;

XXVI – despelar ou depenar animais vivos ou entregá-los vivos à alimentação de outros;

XXVII. – ministrar ensino a animais com maus tratos físicos;

XXVIII – exercitar tiro ao alvo sobre patos ou qualquer animal selvagem exceto sobre os pombos, nas sociedades, clubes de caça, inscritos no Serviço de Caça e Pesca;

XXIX – realizar ou promoverlutas entre animais da mesma espécie ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado;

XXX – arrojar aves e outros animais nas casas deespetáculo e exibi-los, para tirar sortes ou realizar acrobacias;

XXXI – transportar, negociar ou caçar, em qualquer época do ano, aves insetívoras, pássaros canoros, beija-flores e outras aves de pequeno porte, exceção feita das autorizações para fins científicos, consignadas em lei anterior.


Matéria publicada na edição – 257 – junho/2020 da Revista Direcional Condomínios

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Autor

  • Suse Paula Duarte Cruz

    Advogada. Graduada em Direito pela FADAP (Faculdade de Direito da Alta Paulista, 1995); Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD, 2011); pós-graduada e especialista em Direito Imobiliário pela PUC-MG (2022). Ministra cursos e palestras na área condominial. É autora do livro "Respostas às 120 dúvidas mais frequentes em matéria condominial" (Editora Autografia, 2017); coordenadora e coautora do livro "Direito Condominial Contemporâneo" (Editora Liberars, 2020) e coautora do livro "Direito Processual Civil Constitucionalizado" (Editora – Instituto Memória, 2020).

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