Sobre o dever de os síndicos denunciarem a violência doméstica

Neste artigo, redigido em conjunto com a advogada Claudia Areias de Carvalho da Silva, discute-se a obrigatoriedade de comunicação de ocorrência ou indícios de violência doméstica nos condomínios.

De acordo com os dados do Ministério Público Estadual, somente em São Paulo o índice de violência contra a mulher aumentou consideravelmente em 2020, alcançando 51%,4% a mais no período da pandemia em se tratando de prisões em flagrante, pois o isolamento social permitiu que os homens permanecessem mais tempo em casa (Fonte: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Criminal/notas_tecnicas/notaraioxcovid.pdf acesso: 20.07.2020).

Esse aumento, todavia, não se deu apenas no Estado de São Paulo, mas no País todo, o que foi determinante para que alguns Estados aprovassem leis para que os condomínios, por seus síndicos e/ou administradores, façam a comunicação da ocorrência ou indícios de violência doméstica, a qual não é apenas contra a mulher, mas também contra crianças, adolescentes, deficientes físicos e idosos.

Podemos, por exemplo, citar os Estados do Paraná (Lei 20.145, de 05/03/2020); Acre (Lei 3.633, de 25/05/2020); Distrito Federal (Lei 6539, de 13/04/2020); Rondônia (Lei 4.675, de 06/12/2019); Paraíba (Lei 11.657, de 25/03/2020); Minas Gerais (Lei 23.463, de 23/05/2020. OBS.: Essa legislação não impõe multa e tem vigência apenas durante a pandemia).

Caso não sejam cumpridas as determinações, os condomínios poderão ser punidos com a aplicação de multa, cujo valor varia de R$ 500,00 a R$ 5.000,00, a depender do Estado.

No Estado de São Paulo há um Projeto de Lei, de número 108/2020, ainda em trâmite, que está na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa desde 01/07/2020 e prevê multa de 50 a 100 UFESP´s (cada UFESP vale atualmente R$ 27,61), de modo que a multa hoje poderia variar entre R$ 1.380,50 a R$ 2.761,00.

Todas essas legislações impõem ao condomínio o dever de instalar cartazes e informativos sobre violência doméstica, com o intuito de estimular a comunicação, por seus condôminos, de qualquer indício de violência doméstica, às autoridades competentes.

É de rigor ressaltar que no Senado Federal há inúmeros projetos de lei visando a coibir a violência doméstica, já que parece óbvio que as legislações específicas que protegem Mulheres e Gêneros (Lei Maria da Penha), Crianças (Estatuto da Criança e do Adolescente), Idosos (Estatuto de Idoso) e Pessoas com Deficiência não têm sido suficientes.

A preocupação maior do legislador é dar voz a essas vítimas, considerando que 90% dos casos ocorrem dentro de casa e os vizinhos precisam abandonar o antigo dito popular que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, já que será dever fazê-lo.

Nossa cultura de não “metermos a colher” nas brigas domésticas revela a ausência de empatia, de sentimento de humanidade e amor pelo próximo e, por essa razão, vem a norma legal.

Por óbvio, não podemos perder de vista o receio de retaliação, de perseguição, e até mesmo de agressão por parte do ofensor ou de eventual reconciliação entre vítima e seu algoz. No entanto, a relevância social que envolve a situação de violência deve servir para ultrapassar tais problemáticas.

Com grande respeito a todos que pensam que essa lei colocará a comunidade condominial ou seu síndico em risco em caso de comunicação, cumpre lembrar que muitos síndicos e moradores já foram agredidos por tentarem resolver situações de violência no interior das unidades, até mesmo, uma singela comunicação de reclamação por barulho já resultou em ofensas, brigas etc. Aliás, isso por vezes, também é visto em assembleias. Portanto, não nos parece que a existência de uma lei que tem por escopo tutelar aqueles considerados hipossuficientes e que estimula a comunicação de violência por seus pares é que desencadeará eventuais reações dos ofensores.

Ora, e por que o contrário não pode acontecer? Ou seja, será que o ofensor não ficará temeroso em ser denunciado já que sabe que todos os condôminos estão atentos e dispostos a denunciar? Afinal, insurgir-se contra um é muito diferente quando vários fazem a comunicação e certamente contribuirá para que os índices de violência diminuam.

A crítica à legislação é confortável quando não temos contato com essas violências na nossa rotina. O coro velado pela permanência do silêncio, desestimulando a comunicação do crime que ocorre embaixo dos tetos dos nossos vizinhos, calcado em críticas à legislação, não contribuirá com o desejo do legislador de “educar” a coletividade para impedir todos os tipos de violência doméstica.

Importante dizer que violência não é apenas a física, mas a moral e psicológica também representam uma forma dela, que em regra evoluem para as agressões físicas – e sem ajuda a vítima não consegue pôr fim a esse ciclo.

Análise do PL do Senado

Feita essa singela introdução, vamos à concisa análise do Projeto de Lei 2.510/2020, de autoria do Senador Luiz do Carmo. O dispositivo altera artigos da Lei 4.591/64, do Código Civil e do Código Penal, foi aprovado pelo Senado no dia 08/07/2020 e seguiu para a Câmara dos Deputados.

O texto aprovado no plenário do Senado Federal altera a redação dos artigos 9º, 21 e 22 da Lei n.º 4.591/64, legislação que alguns juristas defendem estar derrogada pela entrada em vigor do novo Código Civil Brasileiro, que também trata do condomínio edilício nos artigos 1.331 ao 1.358. No entanto, o projeto propõe sua alteração, o que será aqui observado.

As obrigações do síndico previstas no Art. 9º, §3º, são ampliadas, com a inclusão da letra “f” para determinar o dever de comunicar às autoridades competentes os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, pessoa idosa e com deficiência. Poderia muito bem ter incluído violência e maus tratos contra animais também. Há ainda a inclusão da alínea “n”, que estende o mesmo dever aos condôminos, locatários ou possuidores. Portanto, é dever de todos a comunicação de violência doméstica nos condomínios.

Já o Art. 21 trata da utilização da edificação e a violação dos deveres, impõe ao infrator multa de acordo com o regulamento interno e convenção, de forma que o ofensor poderá sofrer a sanção de multa administrativa a ser aplicada pelo condomínio. Logicamente, sem prejuízo de apuração criminal por parte da autoridade competente. A possibilidade de aplicação de multa ao condômino/possuidor também será possível pela redação do Art. 22 da Lei 4.591/64, com a inclusão do §7º (multa ao condomínio).

O mesmo Art. 22, §1º, alínea “c”, item 1, bem como a alteração do Art. 1.348, Inciso IV, do Código Civil, determinam de forma expressa que além de praticar atos que lhe atribuem as leis, convenções e regimentos internos, o síndico também deverá comunicar às autoridades competentes casos de violência doméstica e familiar contra as pessoas protegidas pelo Projeto de Lei (mulheres, crianças, adolescentes, pessoa idosa e pessoa com deficiência) ocorridas nas áreas comuns ou no interior das unidades habitacionais, praticados mediante ação ou omissão, de que tenha conhecimento.

O referenciado Projeto de Lei determina a destituição automática do síndico ou administrador que, ciente, não comunica a ocorrência da violência doméstica, exigindo para tanto sua advertência prévia ou de assembleia específica convocada para esta finalidade, sem, contudo, esclarecer mais detalhes, pelo que merecerá reparos. A uma porque poderá gerar discussão acerca da revogação da Lei 4.591/64, nessa parte que foi substituída pelo Código Civil. A duas, por que como se dará essa destituição? Quem denunciará o síndico?

As aludidas modificações estão previstas na alteração do Art. 22, da Lei 4.591/64, com o desmembramento do §5º, em alíneas “a” e “b”, e inclusão do §3º ao Art. 1.348 do CC.

No Art. 1.334 do Código Civil há a inserção do §3º, o qual preconiza que a comunicação deverá ser imediata, no prazo máximo de 48 horas, pelos canais adotados pelos órgãos de segurança pública específicos.

A alteração para o Art. 1.336 do Código Civil prevê a possibilidade de aplicação de multa ao condômino infrator (aqui lê-se no Inciso IV o agressor e, no Inciso V, o condômino que vê/ouve a violência e não comunica); ambos poderão sofrer as multas previstas na forma de parágrafo 2º do Art. 1.336 (multa de até 05 vezes o valor da cota) e na forma do Art. 1.337; o quórum para aplicá-la ao condômino agressor será de maioria absoluta dos condôminos restantes, reduzindo o quórum, portanto, para tal comunicação.

Há, por fim, determinação para que sejam afixadas placas alusivas à vedação a qualquer ação ou omissão que configure violência doméstica e familiar com a inclusão de item 2 no Art. 22, §1º, da lei 4.591/64, e inclusão do item X no Art. 1.348 do CC.

Quanto às multas aplicadas ao condomínio, de acordo com o dispositivo em comento, estas serão de cinco a dez salários de referência com a reversão em favor de programas de erradicação de violência doméstica e familiar. Já as multas previstas para o condômino, locatário ou possuidor serão correspondentes até o quíntuplo do valor da contribuição condominial, seguindo a regra contida no parágrafo 2º, do Art. 1.336 do Código Civil.

Ressalvados casos de dolo, o síndico ou condômino que faça a comunicação que não se confirme/sustente fica isento de qualquer responsabilidade, normatizando a ausência da prática do crime de falsa comunicação de crime ou contravenção – Art. 340 do Código Penal (previsão: item 3 da alínea “n” do Art. 9º da Lei 4.591/64, e inclusão de § 8º ao Art. 22 da Lei 4.591/64).

O Projeto de Lei também é aplicável aos condomínios de lotes (modificação ao Art. 1.358-A, do Código Civil).

Quanto à alteração no Código Penal, à redação do Art. 135 inclui-se o termo “violência doméstica e familiar” ao tipo penal que trata da omissão de socorro.

Apenas para informação, indicamos que há outros Projetos de Lei em trâmite, tais como o PL 3.179/2019, de autoria do deputado federal Felipe Carreras, cujo substitutivo ao PL 3.179/2019 altera os artigos 19 a 21, da Lei 4.591/64, impondo multa ao condômino ou possuidor que pratique violência contra idoso, criança, adolescente, mulher, ou atos de discriminação em virtude de cor, raça, etnia etc.. Há ainda em apenso o Projeto de Lei 3.579/2019, de autoria do deputado federal Gill Cutrim, que propõe alterar o Art. 8º da Lei Maria da Penha, para que síndicos e funcionários sejam capacitados com medidas de prevenção à violência doméstica. E o Projeto de Lei 2.190/2020, de autoria do deputado federal Aroldo Martins, que torna compulsória a comunicação às autoridades competentes, por parte dos condomínios residenciais e conjuntos habitacionais, sobre os casos de violência contra a mulher.

As iniciativas legislativas são muito bem-vindas, ainda que careçam de vários ajustes e melhor seria que sua aprovação fosse célere, pois as vítimas de violência doméstica clamam pelo auxílio, afeição e compaixão da sociedade.

Claudia Areias de Carvalho da Silva

Advogada. Mestre em Direito pela Unimes (Universidade Metropolitana de Santos) e pós-graduada em Direito Empresarial pela EPD (Escola Paulista de Direito). É especialista em Direito Imobiliário e graduada pela UniFMU. Sócia do escritório Areias e D’Angelo Sociedade de Advogados, é diretora secretária-geral adjunta da OAB Subseção de Santana (SP); membro do IBRADIM (Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário) e da CRF (Comissão de Regularização Fundiária).


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Autor

  • Suse Paula Duarte Cruz

    Advogada. Graduada em Direito pela FADAP (Faculdade de Direito da Alta Paulista, 1995); Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD, 2011); pós-graduada e especialista em Direito Imobiliário pela PUC-MG (2022). Ministra cursos e palestras na área condominial. É autora do livro "Respostas às 120 dúvidas mais frequentes em matéria condominial" (Editora Autografia, 2017); coordenadora e coautora do livro "Direito Condominial Contemporâneo" (Editora Liberars, 2020) e coautora do livro "Direito Processual Civil Constitucionalizado" (Editora – Instituto Memória, 2020).

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