De capa preta e com a descrição: “reclamações”. Na portaria e administração dos condomínios, o livro de registros é onde o barraco rola solto. A iniciativa, que não é nova, é um alento aos síndicos que deixam de ser perturbados a cada latido do cachorro do vizinho. Nas folhas, os condôminos descrevem suas queixas, alguns assinam, outros não bancam para não comprar briga. E quem lê, chega à conclusão de que viver em condomínio exige muita tolerância.
Num dos maiores condomínios da região central de Campo Grande (MS), o Eudes Costa, as folhas do caderno já estão quase acabando. Em uma única segunda-feira, segundo contagem da administração, cinco novas notificações foram registradas ali.
Mas investigando, algumas parecem ter fundamento, outras de tão ricas em detalhes, chegam a ser surreais. A maioria das reclamações é acerca de um só assunto: perturbação de vizinhos fora de horário.
Em caixa alta, um morador escreve: “Gostaria de denunciar que os vizinhos (cinco rapazes) do apartamento tal fazem muito barulho dia e noite… Mas incomoda muito mesmo, todas as noites, depois das 22h… Não respeitam os vizinhos, muito menos as regras do condomínio”, reclama-se anonimamente.
Um pouco mais adiante, a queixa é contra o barulho do “soprador”, uma espécie de aspirador que organiza a sujeira de folhas, por exemplo. “Inconveniente em muitos momentos, hoje mesmo foi utilizado antes das 7h30 da manhã por um funcionário para varrer nada”, enfatiza a moradora.
Quanto aos animais, a menor das reclamações está nos latidos. A sujeira que os donos deixam bate recorde. Em muitos casos, por surpreenderem moradores com fezes à porta de casa.
Em um caso específico acontecido em dezembro, uma das moradoras relata que teve a cadela machucada pelo gato laranja e branco da vizinha. O texto pede providências do condomínio quanto ao gato por “não ter condição de conviver com outros animais”, justifica a jovem.
Em duas páginas, ela explica que passeando com sua pequena cadela atrás de um dos blocos, foi atacada pelo gato, que machucou a ela e ao bichinho, gerando “cortes profundos”, que foram devidamente fotografados.
Ocupando meia página, no mesmo condomínio, uma senhora relata que o “estudante universitário”, assim mesmo, entre aspas, faz da calçada do prédio sua sala de visitas. “Coloca cadeiras, tereré, narguile, notebook e o barulho das conversas e risadas vira a madrugada”, descreve a reclamante. E ela mesmo argumenta que como não é possível manter cadeiras na calçada do condomínio, ele ocupa à da frente, na rua mesmo. E que pela sala de estar alheia, ela não consegue assistir TV em casa.
Há seis meses que o Eudes Costa está sob nova gestão. Polêmico por conta das brigas com moradores e síndicos, dessa vez, quem ocupa o cargo responde às questões com todo cuidado. Por telefone, a diretoria informou que, no geral, a maioria das reclamações discursa sobre cachorros, seus latidos e, principalmente, a sujeira deixada para outros moradores. O próximo passo, segundo eles, é notificar os condôminos e explicar sobre as possíveis penalidades.
Do outro lado da cidade, na Vila Sobrinho, o caderno mistura reclamações com registro de entrada e saída de técnicos para manutenção do condomínio ou de apartamentos. Síndico do Residencial Beta há quatro anos, Ricardo Silveira explica que as histórias se repetem.
Depois de assumir o cargo, ele até deixava o próprio telefone à disposição dos moradores, mas foi por pouco tempo. A quantidade de xingamentos e batidas de ligação na cara o fizeram mudar de ideia. A orientação é para que os porteiros peçam aos moradores que registrem no livro e, em caso de urgência ou gravidade, cabe aos funcionários avisarem Ricardo.
“As pessoas reclamam umas das outras, mas não querem se expor. Um diz que o vizinho grita, outro bate o sapato em cima, aí eu falo: por favor, coloca no livro de ocorrência, porque para eu tomar uma atitude, primeiro precisa haver uma notificação”, explica.
Nas páginas do livro, uma moradora pede providência quanto aos vizinhos fumantes da janela, que levam toda fumaça para dentro do apartamento dela. No mesmo bloco, a queixa também é para quem acende o cigarro no corredor.
Em resposta, o síndico manifesta argumentando até com lei municipal, que é proibido fumar nas dependências comuns do condomínio e que o vizinho em questão será notificado.
Uma senhora do primeiro bloco deve ser a que mais sofre. Na queixa, ela pede a mudança do ramal do apartamento dela, porque ficou muito parecido com o da portaria. “Me ligam até de madrugada”, conta.
Com a reclamação registrada, o síndico julga se procede ou não, notifica e, em caso de reincidência, aplica a multa. “Isso já existia na legislação, não fui eu que criei, o síndico bonzinho, o que acontece? Ele acaba agindo em favor de quem age errado”, opina.
Questionado se no fim das contas síndico é vilão ou mocinho, Ricardo ri. “É aquele vilão preferido. O cara que todo mundo critica, mas ninguém quer ser, a melhor resposta que eu tenho para quem reclama é: vai ter eleição de síndico, se candidate, eu voto em você”, brinca.