O condômino pode trabalhar em sua unidade autônoma residencial?

Para atividades intelectuais, como de advogados, contadores, escritores etc., que quase não recebem pessoas, os tribunais têm permitido o uso da unidade residencial para a prática profissional e/ou comercial.

Conforme as relações e o mundo evoluem, novas questões vão surgindo em torno da vida em condomínio. A atualmente muito se fala sobre o exercício de atividade profissional dentro dos imóveis nos condomínios residenciais. Isso é possível? Fere a destinação do empreendimento?

Tudo merece, mormente, nos tempos atuais e num mundo globalizado e digital, revisão, mitigação e tolerância a alguns conceitos.

As convenções dos condomínios residenciais trazem em seus ditames que o empreendimento se destina para fins residenciais, o que num primeiro plano nos leva a concluir que não se pode exercer atividade comercial no local, embora tais normas convencionais nada tragam expressamente sobre a proibição ou exclusão de atividade comercial no empreendimento.

O princípio da legalidade previsto no Art. 5º, Inciso II, da Constituição Federal prevê que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão por previsão legal. Por sua vez, o Art. 1.335, Inciso I, do Código Civil diz que o condômino pode usar livremente de sua unidade. É um direito do condômino atrelado a outro direito: o de propriedade. Porém, o mesmo direito que ele tem, os demais também têm. Então, não podemos perder de vista que a tolerância para o exercício de algumas atividades não significa permitir que a saúde, segurança e sossego dos demais condôminos sejam afetados, sob pena de infração aos direitos de vizinhança, podendo fazer cessar a interferência conforme previsto no Art. 1.277 do Código Civil (Lei 10.406/2002).

Já o Inciso IV, do Art. 1.336, também do Código Civil, prevê que é dever do condômino “dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes”.

Portanto, o fato de alguns condôminos exercerem atividades em sua unidade autônoma, sem que se afete a rotina, saúde, segurança e sossego do edifício, seria dar destinação diversa à edificação? Penso que não!

Há algumas atividades comerciais que podem ser realizadas dentro de uma unidade autônoma residencial, principalmente as intelectuais, como as exercidas por advogados, contadores, consultores, professores particulares, tradutores, escritores etc. Essas atividades não causam incômodo capaz de coibir a sua prática. São atividades que não precisam de público intenso, frequente e presencial, bem como, não carecem de funcionários, como nos locais onde há venda de produtos ou a prestação de determinados serviços.

Atividade pode ser disciplinada

Aliás, creio que a grande preocupação dos síndicos e que leva à proibição de atividade comercial é o público entrando e saindo, usando elevadores, gerando maiores custos e deixando vulnerável a segurança do local. Mas isso pode ser disciplinado.

E situação parecida com essa foi a mitigação referente à manutenção de animais de estimação nas unidades autônomas. Há inúmeras convenções que proíbem tal situação e as decisões dos tribunais convergiram para permitir a permanência dos pets nas unidades autônomas, desde que respeitados os três “s” (saúde, segurança e sossego), e até mesmo regras de convivência instituídas e aprovadas pelos condôminos, tais como o uso de focinheiras, guias, carrinhos de transporte, locais próprios destinados aos passeios dos animais etc.

Sinto que o exercício de atividade profissional dentro das unidades residenciais será cada vez mais comum e exigirá dos síndicos e condôminos tolerância, respeito e a instituição de regras para que todos possam exercer livremente seu direito à propriedade.

E os tribunais, analisando cada caso concreto, têm decidido no sentido de permitir o exercício de algumas atividades dentro das unidades autônomas residenciais. Há uma decisão muito interessante do Superior Tribunal de Justiça (STJ), corte responsável por firmar jurisprudência, que confirma tal possibilidade, desde que os demais condôminos não sejam incomodados e a rotina do condomínio não sofra alteração. Trata-se do REsp 1494378-RJ, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, julgado em 27 de outubro de 2015, em que bem salientou o Ministro:

“Apesar dos argumentos trazidos pelos réus, a prova produzida nos autos é clara no sentido de que no imóvel funcionava empresa de projetos de arquitetura, decoração e assessoria técnica, com 10 funcionários figurando os réus como sócios.
(…)
Não há dúvida de que é possível o exercício de atividade profissional na residência; no entanto, há de se observar a destinação do imóvel, bem como os direitos e deveres dos condôminos, coibindo-se eventuais abusos, conforme o disposto nos artigos 1335 e 1336, do Código Civil. No caso em tela, comprovou-se que a atividade dos réus gerou incômodos aos vizinhos, assim como afetou a segurança do edifício, em virtude do intenso movimento de pessoas estranhas no condomínio. Demonstrada a utilização do imóvel de forma indevida e desvirtuada da vocação edilícia, correta a imposição da multa cominatória imposta.”

Já o Tribunal de Justiça desse Estado de São Paulo, em recente decisão, também segue essa mesma linha no julgamento da Apelação 1002991-32.2014.8.26.0004, 31ª. Câmara de Direito Privado, Relator Des. James Siano, julgado em 27 de fevereiro de 2018, em que restou comprovado que a atividade exercida no imóvel não sobrecarregava a rotina do condomínio e permitiu o exercício dela, já que caracterizada como intelectual.

A realidade globalizada pede que as pessoas interajam. Caso seja bem administrado o exercício de algumas atividades dentro do condomínio, isto poderá ser muito saudável para o gestor e os condôminos, inclusive algumas que não são estritamente intelectuais, mas não geram transtornos.

O condômino que vende bolos ou marmitas para seus vizinhos ou aquele que ministra aulas de ginástica para os moradores na quadra ou salão desempenha atividade que é extremamente saudável para o relacionamento entre eles e não há qualquer razão para proibir, mas nada impede que regras com a participação de todos sejam estipuladas.

E essas regras devem ser definidas com bom senso, sob pena de limitar o uso da propriedade, como, por exemplo, fixar o número de visitantes na unidade e, por essa razão, o condômino que exerce a atividade precisa agir com extremo bom senso e boa-fé, justamente para não ferir o mesmo direito dos demais condôminos, abusar da tolerância e alterar o destino do apartamento que é residencial, sobretudo em condomínios muito grandes.

Seguem algumas dicas para se tentar normatizar o exercício dessas atividades:

  • Estabelecer recebimento ocasional de pessoas e em reduzido número nas unidades autônomas para determinadas atividades como aulas particulares etc.;
  • Pedir ao condômino que preencha um informe com a atividade que exerce, se há visitação e horários;
  • O condômino poderá avisar a portaria com antecedência da visita que receberá;
  • Ter horários adequados para eventuais recebimentos de pessoas ou documentos;
  • Determinar que a entrega de documentos seja feita à portaria sem a necessidade de entrada no imóvel; e
  • Nas atividades que geram maiores custos (por exemplo, com uso de gás), realizar forma de taxação diferenciada ou exigir a utilização apenas de energia elétrica.

Não me parece razoável impedir o condômino de realizar determinadas atividades. Também seria exagerado autorizar apenas número reduzido de cliente, isto seria o mesmo que impedir que funcionários das unidades como babás, empregados domésticos e/ou prestadores de serviços frequentem esses imóveis, tornando-se, portanto, necessário refletir sobre o tema.

FEIRAS DE ARTESANATO OU COMUNITÁRIAS

Sob outro prisma, há condomínios que realizam feiras de artesanato, vestuários, feira de hortifrútis destinadas aos seus condôminos, com preços mais acessíveis. Ou seja, o condômino não precisa sair de casa para ter acesso a frutas e verduras frescas, o que certamente colabora para o bem-estar e mais uma vez para a comunhão entre os moradores. Logicamente, essas iniciativas dependem da análise da viabilidade com custos, vendedores idôneos, dentre outros elementos.

Enfim, as relações mudaram e todas as partes envolvidas devem convergir para que a harmonia impere no local. Certamente ideias não faltarão e essa é uma das finalidades deste artigo: Promover o debate sobre o assunto em busca do diálogo, da conciliação e de maior atendimento aos anseios dos condôminos, inclusive o de poder exercer sua atividade profissional dentro da residência ou de ter prestadores dentro do espaço onde reside.


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Autor

  • Suse Paula Duarte Cruz

    Advogada. Graduada em Direito pela FADAP (Faculdade de Direito da Alta Paulista, 1995); Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD, 2011); pós-graduada e especialista em Direito Imobiliário pela PUC-MG (2022). Ministra cursos e palestras na área condominial. É autora do livro "Respostas às 120 dúvidas mais frequentes em matéria condominial" (Editora Autografia, 2017); coordenadora e coautora do livro "Direito Condominial Contemporâneo" (Editora Liberars, 2020) e coautora do livro "Direito Processual Civil Constitucionalizado" (Editora – Instituto Memória, 2020).

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