‘Desjudicialização’ da execução civil das cotas condominiais, o que é isso?

“O Art. 236 da Constituição Federal permite a delegação de atividades judiciais para cartórios e tabeliães e, então, seria plenamente possível utilizarmos os cartórios para fazermos execuções e não apenas conciliações.”

Sabemos que a quantidade de processos em andamento no Brasil é assustadora, conforme apontou o relatório “Justiça em números”, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2016, indicando um número de 79,7 milhões.

É também de trivial sabença que há muito têm sido utilizados métodos com a finalidade de desafogar o Poder Judiciário, como, por exemplo, a Lei 9.099/1995, que instituiu os Juizados Especiais organizados precipuamente para a conciliação. Depois vieram os tribunais arbitrais (Leis 10.259/2001 e 12.153/2009).

Mas o que parecia servir para ajudar acabou por inflar ainda mais a máquina já vagarosa do Poder Judiciário. Afinal, os demandantes não precisavam de advogado para litigar nos juizados especiais e não pagavam custas para o ajuizamento das ações. Bom que se diga que a Lei 9.099/95, dos Juizados Especiais, não permite que pessoas jurídicas sejam autoras e, o condomínio, mesmo não sendo pessoa jurídica plena, igualmente não pode litigar neles como autor.

O brasileiro, que tem a cultura da judicialização, passou a levar inúmeras situações à apreciação do Poder Judiciário. Logicamente, não pretendo através desse artigo negar ou limitar o acesso à Justiça, sob hipótese alguma! Mas é inegável que chega a ser intrigante a dificuldade que temos de ouvir e ser ouvidos. A ideia aqui é trazer uma reflexão sobre o que precisa de uma decisão judicial e temos o dever de resolver através do diálogo, bom senso e conciliação, afinal “justiça tardia não é justiça”!

Nessa esteira, e com os números galopantes de processos sendo ajuizados, veio também o Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), que entrou em vigor em 2016. Este dá mais ênfase à conciliação e à mediação, determinando a criação dos CEJUSC’s (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania), nos Art. 165 e 167, onde conciliadores e mediadores tentam pôr fim aos processos judiciais em andamento e àqueles que ainda não são processos judiciais (reclamações pré-processuais). O Novo Código de Processo Civil também preza pela desburocratização dos processos, visando à duração razoável deles.

O interessante dos CEJUSC´s é que caso as partes firmem um acordo, ele será homologado pelo magistrado e terá força de sentença e, portanto, sem o cumprimento pelo devedor, caberá ao credor manejar a ação respectiva (cumprimento de sentença), cujo trâmite também é mais célere. Certamente, com as sessões de conciliação sendo realizadas num setor específico, os juízes terão mais disponibilidade para julgar e analisar outros casos. É inegável ainda que nessas sessões as partes acabam tendo mais liberdade de expor seus reais pensamentos e objetivos, fugindo do distanciamento do julgador e do formalismo das audiências, onde as partes, quando muito, serão ouvidas em interrogatório.

E, cada vez mais, com o fito único de levar menos processos aos tribunais e, com isso, prestar serviço público de melhor qualidade e valorizar o consenso, busca-se a adoção de meios integrados para a solução dos conflitos e, mais um deles, é o novel Provimento nº 67/2018, do Conselho Nacional de Justiça, pelo qual os cartórios extrajudiciais estão habilitados a realizar conciliação e mediação.

E o que os condomínios têm a ver com toda essa situação?

Avaliemos:

Ainda que com o advento do novo Código de Processo Civil, que conferiu às cotas condominiais a qualidade de títulos executivos extrajudiciais em que o trâmite judicial foi sobremaneira encurtado, não podemos descartar que caso o executado (condômino devedor) exerça seu direito aos embargos, o processo terá seu curso atrasado, pois são inúmeros processos aguardando decisões judiciais. Ademais, para o ajuizamento das ações de execução, o condomínio terá desde logo que despender do valor das custas processuais e, caso tente conciliar-se com seus devedores através dos CEJUSC´s, por exemplo, não haverá tal despesa. Portanto, já se mostra financeiramente mais viável a utilização dos CEJUSC’s, ainda que não se chegue num acordo.

Há outra situação que merece ser sublinhada, a dos cartórios extrajudiciais que atualmente também podem fazer conciliação. Os condomínios também poderiam se valer deles para buscar a conciliação no menor tempo possível. O protesto de cotas condominiais é permitido desde 2008, pela Lei Estadual 13.160 (de São Paulo), mas confesso que se esgotadas as vias de composição extrajudicial, a preferência é o ajuizamento da ação de execução de título extrajudicial, já que os dados do devedor serão inscritos nos órgãos de proteção ao crédito da mesma forma e, caso não haja o pagamento no prazo legal, poderá haver a penhora do imóvel.

Mas existe outra possibilidade que ainda depende de legislação, e é muitíssimo interessante. Vejamos:

O Art. 236 da Constituição Federal permite a delegação de atividades judiciais para cartórios e tabeliães e, então, seria plenamente possível utilizarmos os cartórios para fazermos execuções e não apenas conciliações.

A recuperabilidade dos créditos via ‘desjudicialização’ tem se mostrado exitosa como já ocorre em Portugal e Espanha, em que somente são intentadas as execuções via cartórios após busca de bens em nome do devedor. No caso dos condomínios, tal busca é desnecessária, já que a dívida decorre da titularidade do bem, estando, pois, garantida.

No Brasil já existem ocorrências de execução extrajudicial privada, como nos casos de alienação fiduciária (Lei 9514/1997) ou ainda execução de cédula hipotecária (Decreto 70/66). Portanto, não é algo tão apartado da nossa realidade.Também temos os inventários, separações e divórcios realizados há anos em cartórios extrajudiciais quando não há interesse de menor envolvido.

Temos, portanto, que pensar em instrumentalizar a execução de créditos não apenas de forma extrajudicial, mas também privada, pois dessa forma alcançaremos mais rapidamente a solução do conflito e o recebimento do crédito. Outro dado alarmante é o da Procuradoria da Fazenda Nacional, que constatou inúmeras execuções ficais que foram arquivadas porque os devedores não possuíam bens. Ou seja, movimentou-se a máquina do Poder Judiciário, gerou-se custos para ao final não reaver o crédito, sendo que uma busca de bens antes evitaria o ajuizamento de inúmeras ações fracassadas.

Há todo um projeto com ideias brilhantes apontadas por Flavia Pereira Ribeiro, que trata com muita proficiência da ‘desjudicialização’ da execução civil de forma empolgante e contagiante, a quem tive a honra de ver palestrar e muito me contaminou seu estudo aprofundado do assunto, tanto que decidi compartilhar esse tema aqui.

Não posso encerrar sem dizer da necessidade da presença do advogado nesses casos extrajudiciais, como já existe para os casos de inventário, separação e divórcio, pois embora eles estejam sendo realizados fora do Poder Judiciário, são órgãos fiscalizados por ele e precisam da atuação de técnicos para auxiliar desde a formação da reclamação pré-processual, do acompanhamento numa sessão de conciliação com processo judicial em andamento ou até mesmo determinando sua atuação na ideia ainda embrionária de ‘desjudicialização’ da execução civil.

Em que pese haver a tendência do brasileiro à judicialização, infelizmente ele não tem a mesma postura para a consulta e contratação de advogados, o que eleva e muito as chances do ajuizamento de aventuras jurídicas. O advogado é essencial para a administração da justiça e assim deve, como os demais participantes do Poder Judiciário, estimular a conciliação e atuar em cumprimento aos princípios da cooperação e colaboração tão festejados pela nova legislação processual civil.

Obviamente, para que todos esses meios sejam exitosos, há uma necessidade premente da mudança no comportamento das partes, baixando a “guarda”, estando aptas a ouvir e serem ouvidas e juntas chegarem a bom termo. O início dessa tentativa de conciliação pode ocorrer nos condomínios através de plantões de cobrança, depois CEJUSC´s e, sem êxito, restará a ação de execução de título extrajudicial, enquanto não houver a possibilidade de fazê-la extrajudicialmente.


Matéria publicada na edição – 237 – agosto/2018 da Revista Direcional Condomínios

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Autor

  • Suse Paula Duarte Cruz

    Advogada. Graduada em Direito pela FADAP (Faculdade de Direito da Alta Paulista, 1995); Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD, 2011); pós-graduada e especialista em Direito Imobiliário pela PUC-MG (2022). Ministra cursos e palestras na área condominial. É autora do livro "Respostas às 120 dúvidas mais frequentes em matéria condominial" (Editora Autografia, 2017); coordenadora e coautora do livro "Direito Condominial Contemporâneo" (Editora Liberars, 2020) e coautora do livro "Direito Processual Civil Constitucionalizado" (Editora – Instituto Memória, 2020).

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