1. Introdução
A assembleia condominial representa o principal espaço deliberativo da coletividade, sendo o local onde condôminos exercem seus direitos políticos e decidem sobre temas essenciais da vida comum.
A ata, por sua vez, constitui o documento oficial destinado a registrar os atos, fatos e deliberações ocorridos durante a reunião, servindo como instrumento de validade formal e material das decisões adotadas.
Uma questão que gera frequentes controvérsias diz respeito ao dever, ou não, de lavratura de ata em situações nas quais a assembleia é cancelada ou não se conclui, especialmente quando o cancelamento decorre de consenso dos presentes ou de impossibilidade técnica que inviabiliza sua continuidade.
A controvérsia reaparece com vigor no contexto de assembleias virtuais, nas quais problemas tecnológicos podem comprometer a regularidade do procedimento deliberativo.
Em tais situações, muitos condôminos passam a questionar se o presidente da mesa está obrigado a lavrar ata, se a ata deve registrar deliberações parciais, ou se a própria inexistência de deliberação válida impede a criação de documento oficial.
O presente artigo examina este tema à luz da legislação condominial, dos princípios que regem os atos coletivos e da própria lógica jurídica da formação da vontade assemblear.
2. A natureza jurídica da assembleia condominial e sua formação de vontade coletiva
Para que uma assembleia produza efeitos jurídicos, é necessária a conjugação de elementos formais e materiais:
- Convocação regular;
- Constituição válida da mesa;
- Ambiente regular de deliberação, que assegure participação isonômica;
- Manifestação válida da vontade coletiva, expressa por meio de votação legítima;
- Conclusão formal dos trabalhos, com aprovação e encerramento.
Se qualquer desses elementos for comprometido, a assembleia pode:
- ser anulada, quando houve ato deliberativo viciado; ou
- ser inexistente, quando sequer houve constituição válida da deliberação.
Esse último caso é particularmente relevante quando há cancelamento durante os trabalhos, sem conclusão e sem aperfeiçoamento de deliberações.
O cancelamento representa uma interrupção do ato deliberativo antes de sua formação, impedindo que o processo de decisão atinja o grau de perfeição exigido pela ordem jurídica.
3. A função da ata: registro de deliberação versus registro de ocorrência
A ata tem natureza jurídica de documento de efeitos declaratórios, e não constitutivos.
Ela declara aquilo que foi decidido ou ocorrido, mas não cria, por si só, a validade dos atos assembleares.
Dessa premissa, derivam duas consequências fundamentais:
3.1. Se a assembleia não produziu deliberação, a ata não pode atribuir-lhe efeitos
A ata não legitima deliberações inexistentes.
Portanto, em assembleias canceladas, não cabe ao presidente da mesa formalizar decisões que não chegaram a ser concluídas, sob pena de violação da verdade material do ato.
3.2. A ata pode existir como registro de ocorrência, mas não como ata deliberativa
Mesmo quando a assembleia não se conclui, pode ser lavrado um documento registrando:
- a abertura dos trabalhos;
- as dificuldades técnicas ou ocorrências;
- a ausência de deliberações válidas;
- o motivo e a forma do cancelamento.
Tal documento, entretanto, não se caracteriza como ata deliberativa, é, tecnicamente, um registro descritivo.
4. O presidente da mesa e seus limites de atuação na assembleia cancelada
A função do presidente da mesa é:
- conduzir os trabalhos com imparcialidade;
- garantir a ordem;
- assegurar a correta colheita dos votos;
- declarar o resultado das deliberações válidas.
Contudo, essa atuação pressupõe que haja condições mínimas para deliberação.
Quando tais condições desaparecem, como em assembleias virtuais marcadas por falhas generalizadas de acesso e votação, o presidente não apenas pode, mas deve, reconhecer a inviabilidade de continuidade.
4.1. O cancelamento consensual como manifestação da vontade coletiva
O cancelamento consensual é manifestação válida e legítima da vontade assemblear, pois:
- decorre de constatação objetiva de impossibilidade técnica;
- preserva a igualdade participativa;
- evita vícios de deliberação;
- mantém a integridade do processo democrático interno.
4.2. O dever do presidente da mesa de resguardar a segurança jurídica
Se a assembleia é cancelada:
- o presidente da mesa não pode declarar resultados parciais;
- não pode ratificar votações tecnicamente comprometidas;
- não pode lavrar ata como se as deliberações fossem válidas;
- não pode permitir que interpretações posteriores atribuam validade ao que foi interrompido.
Sua obrigação, neste caso, se limita a:
- registrar a ocorrência;
- consignar a inexistência de deliberação;
- assegurar a convocação de nova assembleia regular.
5. A inexistência de efeitos jurídicos de assembleia cancelada
Do ponto de vista teórico-jurídico, a assembleia cancelada:
- não produz deliberação;
- não gera obrigação;
- não permite registro de aprovação ou rejeição;
- não fundamenta ações judiciais visando preservar votações parciais.
A inexistência jurídica decorre do fato de que não houve conclusão do ato, elemento essencial para gerar efeitos.
6. Existe dever jurídico de lavrar ata de assembleia cancelada?
A resposta deve ser analisada sob duas perspectivas: formal e material.
6.1. Sob o aspecto formal
O Código Civil e a Lei n.º 4.591/1964 exigem a lavratura de ata para registrar deliberações assembleares.
Logo, se não houve deliberação:
- não há obrigação legal de lavrar ata deliberativa;
- não há conteúdo deliberativo a registrar;
- a ausência de ata não caracteriza irregularidade.
6.2. Sob o aspecto material
Embora não haja dever de lavrar ata deliberativa, pode haver conveniência administrativa na elaboração de registro de cancelamento, especialmente:
- para documentar fatos relevantes;
- para demonstrar a inexistência de conclusão;
- para subsidiar eventual decisão judicial;
- para manter a transparência com os condôminos.
É exatamente essa posição adotada por alguns condomínios, ao afirmar que somente produziria eventual ata para fins de cooperação processual, sem atribuir validade à assembleia cancelada e mantendo o registro de que ela foi integralmente interrompida.
6.3. O dever de verdade material
Se a assembleia foi cancelada, o presidente da mesa não pode produzir ata afirmando que houve deliberações válidas.
A ata, enquanto documento de fé pública interna do condomínio, deve refletir a verdade material do ocorrido.
Assim, se houve apenas tentativa de assembleia, sem conclusão, a ata deve, quando existir, registrar exatamente isso.
7. A nova convocação como continuação necessária dos trabalhos
Quando a assembleia é interrompida ou cancelada antes da conclusão:
- a pauta permanece pendente;
- não há deliberações válidas;
- a vida condominial não pode permanecer suspensa.
Por isso, o síndico tem dever legal de:
- convocar nova assembleia para data futura;
- dar continuidade aos temas não deliberados;
- assegurar ambiente técnico e jurídico adequado.
8. Conclusão
O estudo jurídico permite afirmar, com segurança, que:
- A assembleia cancelada não produz efeitos jurídicos, porque não houve conclusão do ato deliberativo.
- O presidente da mesa não está obrigado a lavrar ata deliberativa, pois não há deliberação a registrar.
- Pode haver lavratura de ata meramente descritiva, caso necessário, mas sem atribuição de validade a votações parciais.
- O cancelamento consensual é manifestação legítima da vontade coletiva, especialmente quando fundamentado em impossibilidade técnica.
- A nova convocação é obrigatória, pois a pauta não deliberada deve ser retomada em ambiente regular.
- A ata não pode ser utilizada para criar efeitos deliberativos inexistentes, sob pena de violação da verdade material do ato assemblear.
A controvérsia abordada revela a importância de compreender a assembleia condominial como um ato coletivo complexo, cuja validade depende da conjugação de forma, procedimento, participação isonômica e conclusão.
Quando esses elementos são comprometidos, o cancelamento não apenas é juridicamente possível, como necessário para preservação da integridade democrática condominial.
Em tais situações, a ata, quando elaborada, tem função meramente descritiva e não deliberativa, devendo registrar fielmente que a assembleia não se concluiu e não gerou efeitos jurídicos, respeitando-se o dever de verdade e a segurança jurídica da coletividade.
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