As decisões assembleares e os limites de sua soberania

Caro (a) síndico (a), conselheiro (a), condômino (a), este artigo procura analisar um tema pouco tratado no mercado condominial, embora possua inequívoca relevância: O da soberania das assembleias de condomínio. Por exemplo, é possível uma decisão assemblear deliberar contra uma lei existente ou até mesmo contra a convenção?

Todos os assuntos referentes à administração dos condomínios edilícios são levados às assembleias, tanto na forma Ordinária quanto Extraordinária, quando são abordados temas como eleição e destituição do síndico, subsíndico, conselheiros, aprovação de obras, regras de convivência entre os condôminos, dentre outros itens triviais e os mais importantes. A assembleia, portanto, é a reunião solene dos coproprietários das unidades para o fim de decidir e discutir sobre temas de interesse da coletividade condominial.

O Código Civil de 2002, mais especialmente os artigos 1.347 e 1.350, dispõe sobre as competências das assembleias. O Art. 1.347 preconiza que cabe à assembleia eleger o síndico, representante da massa condominial. O Art. 1.350, ao seu turno, aborda a assembleia ordinária, à qual cabem a aprovação anual das contas, aprovação do orçamento para o próximo exercício, dentre outros temas. Além destes, o Art. 1.334, Inciso III, concede poder às convenções para atribuir outras competências às assembleias. No entanto, os dispositivos não são taxativos ao limitar as decisões dos condôminos, até que ponto elas podem alcançar.

É possível uma decisão assemblear deliberar contra uma lei existente ou até mesmo contra a convenção?

Talvez a resposta seja óbvia, todavia, a experiência em auditoria mostra ser comum a confusão que muitos fazem acerca da soberania da assembleia. Não raras vezes, depara-se com situações de total confronto com a legislação. Destaca-se, para efeitos de ilustração, dois casos reais.

Caso 1

O primeiro episódio envolve um condomínio de classe média em São Caetano do Sul, na Região Metropolitana de São Paulo, e ocorreu em 2017. Ao realizar a análise documental foi identificada uma quantidade substancial de pagamentos cuja comprovação era feita por meio de recibos simples, aqueles que se compra em papelarias, sem qualquer teor fiscal e obstando, ainda, a identificação precisa do fornecedor – haja vista ausência de CNPJ/CPF – e dos produtos adquiridos ou serviços contratados. Quando a documentação comprobatória é provida de notas fiscais ou documento equivalente, as informações dos produtos e dos serviços são exatas, com códigos, contendo a inscrição do fornecedor/prestador na Receita Federal e, com esses dados, é possível verificar a procedência da despesa e realizar uma análise mais eficaz, frutífera e desta forma o condomínio cumpre a lei.

Dentre os documentos auditados, havia um termo assinado pelos então conselheiros e pela então síndica com o seguinte teor: “Visando a redução de custos, o Condomínio passa a realizar compra e contratação sem a necessidade de emissão de notas fiscais”. A redação aqui replicada não é exatamente a contida no documento, pois a memória (do autor do artigo) não é tão boa, mas o sentido do escrito está mantido.

No dia da assembleia para apresentação do resultado da auditoria, fora exposto o apontamento tanto sobre as despesas desprovidas de documentação fiscal, quanto ao termo elaborado e assinado por conselheiros e a síndica. Uma das então conselheiras, presente à reunião, pediu aparte e falou “eu lembro, nós assinamos e aprovamos em assembleia porque se exigirmos nota fiscal o valor aumenta muito”.

Caso 2

O segundo caso é um pouco parecido, entretanto, envolve somente pagamentos de honorários para o presidente e conselheiros de uma associação, que possui natureza jurídica diferente de condomínio edilício, não obstante, a correta interpretação do termo soberania é imprescindível em ambos.

A auditoria identificou que os honorários para os membros do corpo diretivo (presidente e conselheiros) estavam sendo quitados por meio de recibo simples, digitado, datado e assinado pelo favorecido, sem retenção e recolhimento de tributos. Em reunião com os administradores, estes informaram que o processo havia sido submetido à assembleia e aprovado o pagamento neste formato, também objetivando a redução de custos com recolhimento de tributos. E nesta reunião os administradores proferiram a frase que motivou o presente artigo: “a assembleia é soberana”.

A assembleia é soberana?

Antes de iniciar a discussão sobre a tônica, forçoso ressaltar que quando se faz a menção a “documento sem teor fiscal”, refere-se a situações em que há incidência de impostos e optou-se (por falta de informação ou má-fé) a proceder de modo a dissimular a incidência com o objetivo de evitar o pagamento dos tributos.

Para a legislação tributária brasileira, não importa se o processo foi realizado por falta de informação ou orientação ou por intenção de fraudar o Fisco, o contribuinte será penalizado na mesma medida, com cobrança de multa, juros e afins.

Retornando ao assunto central. São dois casos reais em que a assembleia deliberou em sentido contrário à lei, mais especificamente trata-se de infração prevista no Art. 1º, Inciso V, da Lei 8.137/90, cuja redação é:

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
(…)
V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.”

A pena prevista para este tipo de crime é de dois a cinco anos mais multa, ou seja, não é pouca coisa.

Imperioso reforçar que não somente o prestador/fornecedor está sujeito à pena, pois o Art. 11 da mesma lei traz:

“Art. 11. Quem, de qualquer modo, inclusive por meio de pessoa jurídica, concorre para os crimes definidos nesta lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade.”

A exigência de nota fiscal ou documento equivalente é um assunto sério e não cabe a uma assembleia dispensá-los.

O filósofo Jean-Jacques Rousseau define soberania como a vontade geral, que emana do povo: “Ela é a vontade do corpo do povo ou somente de uma parte” (Ref.: ROUSSEAU, Jean-Jacques – Do Contrato Social – Editora Martin Claret – 2019).

Trazendo esse significado filosófico para a esfera condominial e para uma explicação mais precisa, cita-se a jurista Maria Helena Diniz. Em sua obra Curso de Direito Civil Brasileiro (33ª Edição, 2019), ao abordar este assunto, ela destaca: “Contudo, não é ilimitado nem absoluto o poder desse órgão máximo; sofre restrições da lei e da convenção e pode ser judicialmente controlado (CC, art. 1.350, § 2º).” [p. 295, grifo nosso]

Para tanto, ela alerta quanto a importância de se observar o Art. 1.354 do Código Civil e é acompanhada por Flávio Tartuce: “A assembleia não poderá deliberar se todos os condôminos não forem convocados para a reunião (art. 1.354 do CC). Devem ser utilizados meios idôneos e amplos de informação e publicidade” (Ref.: Direito das Coisas, 11ª Edição, 2019, p. 428). Tartuce complementa: “O desrespeito ao dever de informação gera a nulidade absoluta do ato da assembleia, servindo como fundamento a fraude à lei imperativa (Art. 166, Inc. VI, do CC).” (p. 428 e 429).

Cumpridas as devidas formalidades, tem lugar a soberania, vez que a vontade dos presentes obrigará os ausentes e, neste diapasão, Maria Helena nos ensina: “Mesmo que não haja comparecimento de todos os consortes, pois as deliberações nela tomadas atingirão a todos, pois nenhum poderá alegar desconhecimento da reunião assemblear” (p. 293 e 294).

Em suma, a soberania assemblear significa que as deliberações tomadas pelos presentes na assembleia obrigam os ausentes a cumpri-las. Todavia, forçoso repisar que assembleia é um ato solene e suas formalidades precisam ser rigorosamente cumpridas, sob pena de impugnação, sobretudo no tocante à publicidade prevista no Art. 1.354 do Código Civil:

“Art. 1.354. A assembleia não poderá deliberar se todos os condôminos não forem convocados para a reunião.”

Acerca de deliberação em assembleia divergente à convenção e que incorra na necessidade de alterar a norma convencional, é preciso, para que possua validade, observar o quórum exigido no Art. 1.351, primeira parte da mesma Codificação: Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção” [grifo nosso]. Ressalta-se que são 2/3 dos condôminos e não dos presentes à reunião.

Em suma, neste artigo foram inseridos dois exemplos reais que tratam de pagamentos desprovidos da devida documentação fiscal, mas estas não são as únicas situações encontradas nas auditorias, há casos de decisões autorizando a contratação de funcionários inobservando a legislação trabalhista e expondo os condôminos a riscos processuais, financeiros e fiscais.

Em suma, soberania assemblear não significa que tudo pode. Espero que o leitor tenha gostado e que o conteúdo seja útil. Obrigado e até mais!


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Autor

  • Andrey Araújo

    Graduando em Direito na Escola Paulista de Direito (EPD). Atua como parceiro no escritório Irina Uzzun Sociedade de advogados e tem experiência com auditoria condominial, compliance e background check.

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