Lígia Ramos, a arquiteta que virou síndica

“A função social do síndico é promover relações entre vizinhos, é lembrá-los que não estão lá só para ratear despesas”

Lígia Ramos desenvolve projeto de gentileza em condomínios

Síndica profissional Lígia Ramos

Lígia Ramos: Liderança empática

“Sou natural de Campinas, onde meus pais criaram a mim e minhas três irmãs. A minha mãe era secretária de uma multinacional alemã e admirava o idioma pátrio da empresa, por causa disso cursei o ensino fundamental em escola alemã. Na universidade, ingressei em arquitetura, depois migrei para biologia, fiz mestrado em bioquímica e doutorado em físico-química. Conquistei uma bolsa-sanduíche, que é uma bolsa para estudar um período em universidade parceira no exterior, e fui fazer doutorado no Canadá. Morei numa região muita fria, com iceberg e urso polar, então fiz muitos desenhos com giz pastel e revesti as paredes de casa com flores e vegetação para ‘aquecê-las’. Morando fora tive alguns insights: eu me interessava muito mais pelas pessoas que pelos reagentes químicos; segundo, o morar me fascinava. Assim que voltei ao Brasil, fiz um curso de decoração e retomei a faculdade de arquitetura.

O mundo condominial entrou na minha vida aos 26 anos. Casada pela primeira vez, me tornei subsíndica do prédio. Eu era agitada, politizada, tinha participado do centro acadêmico da Unicamp, sabia me posicionar bem e acreditei que pudesse contribuir para melhorar o condomínio. Decorei o salão de festas, criei um ambiente acolhedor e constatei que os condôminos gostavam de ficar lá.

Pouco mais à frente, já vivendo na capital paulista, conheci o meu segundo marido quando fui decorar o apartamento dele. Ele era viúvo, com dois filhos pequenos, de 3 e 5 anos. Fiquei encantada com aquela família que já veio pronta, me apaixonei pelo trio. Depois, teríamos ainda a nossa filha, a Vivi. Nos casamos e nos 20 anos que durou nossa relação, residi nesse imóvel, num edifício de poucas e espaçosas unidades, no Brooklin. Candidatei-me à síndica orgânica porque não concordava com as elevadas despesas do condomínio.

O condomínio tinha cerca de três anos quando assumi a gestão, a qual cumpri por dez mandatos bienais. Nele, aprendi muita coisa, por exemplo, que ao adotarmos o bom hábito das manutenções preventivas, dá para manter o prédio sempre em ordem. Uma vizinha se mudou para um condomínio de alto padrão no Campo Belo e me indicou como síndica. Aceitei. E assim vieram os condomínios da minha carteira, sempre por indicações, com base nos resultados que eu entregava.

Continuei trabalhando como arquiteta, inclusive para vários condomínios, mas jamais misturei as estações a ponto de levar vantagens, sou rigorosamente contra práticas escusas. Já nos condomínios em que eu era síndica, naqueles com menos recursos, cheguei a doar meu conhecimento de arquitetura e decoração para pequenas demandas. O condomínio contratava a síndica e levava a arquiteta de graça (risos!) ou a bióloga. Eu cuido de plantas, restauro jardins, troco espécies vegetais quando sei que irão entupir a tubulação. Se bem que hoje em dia, faço isso cada vez menos por falta de tempo; delego a colegas.

Há 17 anos abri minha empresa de sindicatura, que nasceu com DNA feminino, acolhedor. O síndico trabalha com pessoas e para pessoas, tentando acomodar suas dores em prol da boa vida em comunidade. Eu apostei em um time feminino para prestar esse atendimento, valorizando características marcantes do gênero, como sensibilidade e afetividade. Vislumbrei também a empregabilidade para o sexo feminino em posição de comando. Nos condomínios em que atuo, tenho mulheres zeladoras, porteiras, líderes na faxina, e até uma zeladora que dirige trator em um condomínio horizontal no interior.

Atualmente minha carteira tem 25 condomínios, e já devo ter atendido cerca de 70 ao longo dos anos, porque uns saem, outros entram. Eu trabalho sem preposto, são muitas decisões para tomar, prefiro assim. Tenho um time bem treinado de vistoriadoras que vão aos condomínios, e eu também faço visitas periódicas, mas o tempo inteiro eu coordeno tudo com as meninas e com os zeladores. Esse método funciona bem para mim porque para a minha atuação continuar a ser pessoal existe um limite de empreendimentos: 30 é a quantidade que dou conta de gerir.

Um dia desses abri mão de um condomínio chique, no qual eu estava há muitos anos, pois me senti desrespeitada na forma como uma questão foi conduzida. Eu iria precisar fazer um grande esforço para reverter esse sentimento e não tenho mais disposição para isso, nem tempo. Não é que eu desdenhe do dinheiro, mas ele não me faria bem, dinheiro é energia das pessoas. Você tem de pagar as pessoas com felicidade para gerar prosperidade. A minha mãe teve uma ajudante na criação das filhas, a Chichica, uma segunda mãe. Em casa não tinha frescura, almoçávamos todos juntos, havia respeito, registro em carteira, e a remuneração dela era valorizada, tanto que o dinheiro para a Chichica tinha valor de bênção; ela prosperou, comprou casa, carro, com o trabalho dela.

Esses valores familiares são os que carrego para minha vida pessoal e profissional. Talvez por isso eu tenha um olhar mais empático com as pessoas que trabalham em condomínios. Em todos os edifícios sob minha gestão os funcionários tomam café da manhã. Sempre que consigo, transfiro o refeitório para um lugar mais ventilado e iluminado, porque tem muito prédio bacana cujo projeto original ignorou essa necessidade. E no fim do ano, fomento a doação de caixinha pelos moradores, o que geralmente rende um 14º salário. Procuro incentivar a retomada aos estudos, com ajustes de horário de trabalho. E, quando fico sabendo de caso de alcoolismo, eu me apoio em condôminas maravilhosas, que os levam para programas sociais de tratamento das igrejas.

Há pessoas boas e generosas nos condomínios, assim como existe o outro lado. Eu já fui deposta com injustiça, já ameaçaram atropelar a minha filha, já fecharam o microfone na minha cara para eu não ter direito a réplica, mas eu não tenho medo. Aprendi a me defender em assembleias, a fazer constar minha defesa em atas, e a pedir explicação em juízo diante de insinuações e falsas acusações. Eu sou calma, mas não sou boba.

Eu ainda acredito no potencial de desenvolvimento humano nos condomínios. A função social do síndico é promover relações entre vizinhos, é lembrar aos moradores que eles não estão lá só para ratear despesa. Há seis meses participo de um projeto que visa o despertar para a prática de gentileza entre morador e morador, morador e funcionário, funcionário e funcionário, administração, com vários níveis cruzados. Está sendo desenvolvido com parcerias interessantes e acredito que terá boa aderência. Precisamos recuperar o senso de vizinhança.”

Lígia Ramos, em depoimento concedido a Isabel Ribeiro


Matéria publicada na edição 291 jul/2023 da Revista Direcional Condomínios

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