O Projeto de Lei 2.510/2020: Combatendo a violência doméstica e familiar em condomínios

No dia 08 de julho de 2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.5010/2020, que trata do combate à violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes, pessoa idosa e pessoa com deficiência, no âmbito condominial, incluindo como dever do síndico, condômino e possuidor, atribuições para denúncia e procedimentos administrativos que couberem, sob pena de multa e outras ações por parte da coletividade.

O texto foi encaminhado à Câmara de Deputados para debates e votação. Mas quais os fatores tornam um projeto de lei de significativa relevância como este em objeto de dúvida e discussão? Vejamos.

Em nossa doutrina especializada em direito condominial, há tempos temos como verdadeiro que o Código Civil, quando entrou em vigência, derrogou tacitamente a lei 4.591/64 no tocante aos artigos que com ele conflitavam ou tratavam do mesmo assunto.

Tal verdade foi reconhecida também no STJ em seu julgado (Ag. 1.380.418), onde o Ministro Arnaldo Esteves Lima, de forma clara, assim se expressou em fevereiro de 2011:

“Observo que a relação jurídica existente entre os condôminos não é de consumo, de maneira que ela não se submete à disciplina normativa do Código de Defesa do Consumidor, mas à do Código Civil, na parte em que regulamenta o condomínio edilício (Arts. 1.331 a 1.358), e à da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, naquilo em que não foi revogada pelo Código Civil.”

Logo, o PL 2.510 esbarra em uma alteração de conceito, até então sedimentado, quando força uma mudança na Lei 4.591/64 nas questões referentes ao conteúdo da Convenção (deveres do síndico, condômino e possuidor), penalidades, competências do síndico e sua destituição.

Da mesma forma o PL 2.510 altera o Código Civil também no conteúdo da Convenção no tocante aos deveres dos condôminos e possuidores, penalidades, responsabilidade solidária quando da transferência de poderes de representação ou funções administrativas e destituição do síndico, com ênfase ainda na aplicação subsidiária dos deveres dos condôminos e possuidores, bem como destituição do síndico nos condomínios de lotes.

Mesmo tendo sido motivado pela busca do útil e necessário, eivado de interesse social cabível, principalmente neste momento de pandemia, onde o ficar em casa se tornou o normal, provocando de forma infeliz em certos casos um aumento de violência, temos que pontuar os problemas práticos que o projeto de lei poderá criar:

Das atribuições, deveres e competências do síndico

O síndico é quem administra o bem coletivo, valorizando o patrimônio (parte exclusiva e comum) de um condomínio, mantendo o respeito a todos os que residem no local, que o escolheram (deliberaram) por meio da assembleia em atendimento à Convenção e Regimento Interno. Ou seja, o síndico já mantém o alerta aos desvios comportamentais naquilo que está previsto no Código Civil, entretanto, não possui meios de invadir o direito de ir e vir, salvo, como visto recentemente, nos fechamentos de área comum em favor da coletividade.

O PL não só atribui ao síndico um ato discricionário de avaliar situações, como estas podem, sem a devida comprovação, esbarrar em perseguições ou mesmo denunciação caluniosa. Pois o síndico, além de ser obrigado a denunciar em até 48h (com informações detalhadas) situações de violência que lhe chegarem ao seu conhecimento (tal como qualquer cidadão), poderá impedir a entrada do infrator (quando em flagrante ou com ciência de medida protetiva) e comunicar as autoridades policiais. Haverá ainda possibilidade de multa administrativa imposta pela autoridade do poder público (esta ao condomínio pelo ato do síndico), além de responsabilidade civil, penal e possível destituição.

Desta forma, o síndico, ou aquele a quem transferir o poder, passa a ser, de forma solidária, um fiscal 24h no combate à violência que venha a ocorrer no ambiente doméstico ou familiar condominial, devendo, para tanto, fixar placas informativas.

Ocorre que nem sempre a vítima se sente confortável para identificar no gestor condominial, próximo da vida familiar, um porto seguro para fazer reclamações; ou ainda, no dia a dia condominial, nem todo grito de socorro caracteriza um ato violento (já lidamos com situações reclamadas pelos vizinhos em que isso ocorria num momento de ato íntimo e consentido de um casal), tampouco um choro aos berros de um bebê seja maus tratos (aqui também lidamos com situação que envolvia uma criança com deficiência auditiva e assim ela se comunicava).

Nos parece que a subjetividade com que o PL propõe trazer, de forma simples, uma solução, acaba, na prática, na vida diária do condomínio, gerando mais um ponto de conflito, dúvidas e desarmonia em lugar de efetivamente vir a combater a violência. Temos, por fim, que a divulgação da informação é prevista, mas o “desculpe pelo engano” não, e vários tipos de diálogos mais acentuados em uma dada tradição cultural poderão vir a ser confundidos como uma briga ou maus tratos quando se manifestarem em tons fortes e altos.

Dos deveres dos condôminos e possuidores

Também a imposição desta obrigatoriedade aos condôminos e possuidores se demonstrou desproporcional, quando determina a necessidade de estes comunicarem, sem qualquer indício, ato que considerem violência, ampliando a multa por descumprimento de norma condominial (prevista no § 2º do Art. 1.336 do CC) não só aos proprietários, mas também aos ocupantes, por qualquer dever previsto nos incisos II a V (este novo) do Art. 1.336. Assim, o PL altera a multa para um ato personalíssimo, diferente do que tínhamos antes, quando somente o proprietário seria responsável pelos atos de seus ocupantes.

Em locações por temporada, por exemplo, terá que o condomínio estabelecer critérios, para não aplicar uma multa hoje, inexequível amanhã? Oportuno lembrar que a aplicação da multa, para este novo inciso V, será por quórum menor que o tradicional 2/3, qual seja de maioria absoluta dos restantes, fato replicado na multa pelo reiterado descumprimento da norma condominial prevista no Art. 1.337 do CC.

Da destituição do síndico

A destituição do síndico se torna automática (sem quórum, apenas por comunicação em assembleia), se o mesmo já tiver sido advertido pela assembleia, ou ato equivalente, por não promover a comunicação de fato que se considere como violência doméstica e familiar, contra mulher, criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência às autoridades ou adote posturas que a lei lhe impõe.

O PL, ao alterar a Lei 4.591, consegue estabelecer que a assembleia para destituição automática seria convocada por 2 pessoas, não repetindo tal fato quando trata da alteração do Código Civil, mantendo-se ¼. Tal incompatibilidade poderá, de plano, ser matéria de grande debate e insegurança jurídica, se aprovada e colocada em prática, pois se retoma das cinzas, como uma Fênix, uma lei derrogada tacitamente no tocante à convocação de assembleias extraordinárias, ainda que em assunto novo.

Neste item se tenta tornar regra uma infeliz exceção da sociedade (não denunciar), penalizando o administrador em um ato que não se torna útil, pois a omissão de vários (vizinhos e familiares que podem conviver com o drama) não pode penalizar um que administra o todo.

Conclusão

O combate à violência doméstica e familiar, em favor da vida de mulheres, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, não se faz com imposições desconcentradas e desarmoniosas, mas por meio de políticas públicas sérias e eficazes, da infância até longa vida, com fiscalização não particular, mas governamental, sem desconstruir uma instituição que existe como meio de habitação e não de fiscalização da vida privada, pois crime cabe a qualquer um denunciar, até a um síndico de um condomínio.


Não reproduza o conteúdo sem autorização do Grupo Direcional. Este site está protegido pela Lei de Direitos Autorais. (Lei 9610 de 19/02/1998), sua reprodução total ou parcial é proibida nos termos da Lei.


Autores

  • Cristiano de Souza Oliveira

    Advogado e consultor jurídico condominial há mais de 28 anos. Mediador Judicial e Privado cadastrado perante o CNJ. Integra o quadro de Câmaras de Mediação e Arbitragem no campo de Direito Condominial. É Vice-Presidente da Associação dos Advogados do Grande ABC, Membro do Grupo de Excelência em Administração de Condomínios - GEAC do CRA/SP, palestrante e professor de Dir. Condominial, Mediação e Arbitragem, autor do livro "Sou Síndico, E agora? Reflexões sobre o Código Civil e a Vida Condominial em 11 lições" (Editado pelo Grupo Direcional em 2012). Sócio-diretor do Grupo DS&S. Diretor do Instituto Educacional Encontros da Cidade – IEEC. Já foi Presidente da Comissão de Direito Administrativo da 38ª Subseção da OAB/SP – Gestão 2016-2018 / Presidente da Comissão de Direito Condominial da 38ª Subseção da OAB/SP – Gestão 2019-2021 / Ex - Membro na Comissão de Direito Condominial do Conselho Federal da OAB e da Comissão da Advocacia Condominial da OABSP –2022.

  • UserName

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

dois × 5 =