“Você tem de se tornar imprescindível e cuidar dos detalhes é parte disso”
Jailma Brito, 48 anos, é síndica profifissional e psicóloga
“Sou baiana, nordestina, sertaneja. Como bem disse Euclides da Cunha, o sertanejo é, antes de tudo, um forte. E eu fui educada para ser forte. Sou de Cansanção, a 300 km de Salvador. Vim para São Paulo com um ano de idade, com meus pais e minhas duas irmãs. Viemos assim como tantos nordestinos que migraram ao centro-sul do Brasil para ganhar as grandes cidades. A maior parte migrou para conseguir dar uma melhor condição de vida aos filhos, o que é muito nobre da parte desses pais, pois não é fácil deixar para trás amigos, familiares e costumes.
Passei a infância no Grajaú, periferia da zona sul. Minha mãe era diarista, e meu pai, vigilante em um colégio, o que foi sensacional porque ele pegava emprestado livros e gibis da Turma da Mônica na biblioteca e levava para lermos. Adorava Monteiro Lobato e Agatha Christie. E o meu sonho não era ter uma Barbie, mas o coelho Sansão. Eu queria ser empoderada como a Mônica. Ao contrário de uma irmã, que ganhou prêmio como melhor aluna da escola, eu não era estudiosa, mas amava ler. Dentro de nossa realidade social, conclui o ensino fundamental e julguei ser o suficiente.
Com a ilusão de que seria possível se restabelecer no sertão, a minha família voltou para a Bahia, mas não deu certo. Porém, vivi uma experiência que aflorou minha sensibilidade e habilidade de escuta ativa, características importantes a um gestor condominial. As pessoas analfabetas da cidade me procuraram pois queriam se comunicar por meio de cartas com familiares que haviam migrado. Eu lia e escrevia cartas, sem cobrar nada, mas me davam um dinheirinho achando que os segredos ficariam melhor guardados. As notícias eram sobre gravidez, morte, traição, abandono e despedida; me emocionei muito junto dessas pessoas.
Regressamos, mas sem minha irmã mais velha, que havia se casado e ficou no sertão. Minha outra irmã, hoje advogada, começou a trabalhar como recepcionista. A minha mãe retomou as faxinas e eu tomava conta do meu irmão caçula. O meu pai conseguiu emprego como porteiro de um condomínio residencial em Moema, permanecendo por 30 anos. Eu tinha dó porque ele madrugava para conseguir chegar no horário. Naquele tempo o transporte público era mais complicado e morávamos longe, estávamos de volta ao extremo da zona sul. Eram os anos 1990, um período de muita violência nos bairros da região.
Nas periferias, não era comum haver prédios e a palavra síndico não me dizia muita coisa. Meu primeiro contato com um síndico foi péssimo. Aos 17 anos, havia começado a trabalhar como empregada doméstica no Jardim da Saúde, e levava a filha do casal ao playground. Um dia a síndica foi reclamar com minha patroa que eu ria e falava alto demais, que incomodava os outros. Eu escutei tudo e doeu. Então síndico era aquilo? Um ‘coronel’ que estava ali só para ver os erros dos outros? A patroa, uma socióloga, saiu em minha defesa.
Fiquei oito meses com essa família, que me acolheu bem porque eu provei que era confiável e detalhista. Limpava com esmero até lugares ocultos, como o forno, porque queria manter meu emprego. Isso é algo que aprendi ali, por conta própria, e pratico sempre: você tem de se tornar imprescindível ao máximo e cuidar dos detalhes é parte disso. Estimulada por essa socióloga, eu voltei a estudar. Ela me fez enxergar que eu tinha direito a estudar e ter planos. Trabalhei depois no consultório de uma dentista, que também me incentivou a continuar estudando. Paguei um curso técnico de administração de empresa com dificuldade. Os colegas compravam coxinha e refrigerante no intervalo, e eu, sem dinheiro, dizia que estava fazendo dieta.
A perseverança me levou a outro pódio, que são metas estabelecidas. Eu queria estagiar e consegui entrar em uma grande empresa para trabalhar com vendas, o que exige raciocínio rápido e extroversão, e isso eu tinha. Fui efetivada ao concluir o estágio e trabalhei lá durante quatro anos. Nessa época me casei, comprei apartamento na região do Campo Limpo com meu marido e também ingressei na faculdade de administração. Mas cai do pódio, perdi o emprego. Sem dinheiro, tranquei a faculdade.
Eu estava em casa, desempregada, com um filho de seis meses, quando a sindicatura bateu à porta. Meu esposo é da área contábil em uma multinacional e a síndica do nosso condomínio, que não se acertava com nenhuma administradora, o procurou querendo contratá-lo para cuidar da parte burocrática, como folha de pagamento dos funcionários. Com receio de não ter tempo para a tarefa, ele hesitou, então me ofereci para ajudá-lo. Ele ficou com a parte contábil e eu com o restante. Poucos anos depois, um prestador de serviço elogiou nossa administração e sugeriu estendermos essa atuação para condomínios pequenos dos arredores.
Com muita labuta, crescemos, conquistamos 23 clientes. Eu me graduei em psicologia, mas os condomínios prevaleceram na vida profissional. Estabeleci novo pódio: administrar prédios em bairros nobres. Compramos uma sala comercial no Complexo Bonnaire, no Morumbi, formado por torre com 494 salas, centro de lojas e condomínio-clube com três torres e 400 apartamentos. Ao participar de uma assembleia, conheci o síndico profissional e fiquei duplamente surpresa: além de nunca ter ouvido falar nisso, o que eu vinha desempenhando nos últimos 20 anos se assemelhava muito a esse papel.
Quando o síndico renunciou ao cargo, assumi provisoriamente por 60 dias até termos outro síndico profissional. Agi assim por indicação de condôminos, que estavam acostumados a me ver dando sugestões nas assembleias. Mas o meu pódio era mais modesto, não queira ser síndica de um complexo condominial. Porém, aprovaram minha atuação, me convenceram a me candidatar oficialmente e estou como síndica há nove anos. Nos últimos dois, assumi mais alguns poucos condomínios.
Algumas marcas que imprimo na sindicatura são gestão humanizada (com condôminos e colaboradores), eventos de integração nos condomínios, estar em dia com normas e legislações, e cuidar dos detalhes. Tem condômino, por exemplo, que não dá importância ao paisagismo, mas eu aviso que no dia em que ele for vender o apartamento ou a sala comercial, pode estar certo que a avaliação do imóvel vai começar pelo jardim. Detalhes fazem a diferença.”
Jailma Brito, em depoimento a Isabel Ribeiro
Matéria publicada na edição 293 set/2023 da Revista Direcional Condomínios
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